Alzira e Carlota na política brasileira

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As conquistas femininas andaram junto à luta e, as primeiras ocupam um lugar expressivo nessa caminhada

Pulso firme, autoafirmação, dedicação e o vislumbre de uma vida que vai além. Foram essas as estratégias usadas por Alzira Soriano quando, na cidade de Lajes, no Rio Grande do Norte, ela foi protagonista de algo ainda inédito na América Latina: a primeira mulher a chegar ao cargo de prefeita. Aos 32 anos, ela fugia de diversos padrões impostos por mulheres à época e, mesmo assim, conseguiu chegar à chefia do executivo local, em 1928.

As conquistas femininas andaram junto à luta e, as primeiras ocupam um lugar expressivo nessa caminhada. Para que Alzira chegasse lá, foi necessário que o então governador do RN, José Augusto Bezerra de Medeiros, sancionasse a Lei n° 660, de 25 de outubro de 1927, que permitiu que mulheres se candidatassem e votassem. No posto de eleitora, a potiguar Celina Guimarães Viana, de Mossoró, foi quem registrou seu direito político de forma inédita, também em 1928.

“No Rio Grande do Norte poderão votar e ser votados, sem distinção de sexos, todos os cidadãos que reunirem as condições exigidas por esta lei”, diz um trecho do texto da lei encontrado no Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Norte (TRE-RN).

Mesmo se José Augusto, que aplicou a sanção já no fim do seu mandato, não tivesse aprovado o projeto de lei, o próximo a assumir o cargo, o político Juvenal Lamartine, era cotado para fazê-lo. Isso porque Juvenal mantinha contato direto com a Federação Brasileira do Progresso Feminino, presidida pela sufragista Bertha Lutz. “Ele tinha contato com a federação, com a Bertha, e também era do mesmo grupo político do pai da Alzira. Ele era um dos poucos políticos da época que se posicionava a favor do voto feminino”, conta a historiadora e pesquisadora da vida de Alzira, Isabel Engler.

Foi Lamartine quem mencionou o nome de Alzira ao cargo. Quando Bertha Lutz soube do avanço conseguido no Rio Grande do Norte em 1927, foi ao encontro do governador, no ano seguinte, para garantir que uma mulher ocupasse uma das candidaturas. 

Por que Alzira Soriano?

Filha do coronel Miguel e Margarida de Vasconcellos, Alzira aprendeu a lidar com o luto e a tomar a frente nas decisões ‘de homem’ da família já muito cedo. O mundo, à época, carregava muitos nomes que assombravam e tornavam a vida comum à dor, como quem perde corriqueiramente: difteria, tétano, doenças da infância, dificuldade de acesso da cidade interiorana…

Os pais de Alzira, antes de seu nascimento, já tinham tido outros três filhos: duas mulheres e um homem, que não sobreviveram aos primeiros anos. Ela foi a primeira a passar dos aniversários iniciais e, dos 22 irmãos, apenas oito sobreviveram. Todos os outros 14 foram levados por doenças como crupe.


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Anos mais tarde, Alzira reviveria a dor do luto novamente. Se casou aos 17, com Thomaz Soriano de Souza, de família tradicional pernambucana e líder estudantil na Faculdade de Direito do Recife. Tiveram quatro filhos juntos, mas uma delas, Maria do Céu, morreu de sarampo antes de completar um mês. Thomaz deixou Alzira e as três crianças, uma delas ainda na barriga, cedo, quando morreu de gripe espanhola, em 1919. A jovem mãe ficou viúva aos 22 anos. 

Para passar pela dor e concluir a gravidez, Alzira se mudou para a Fazenda Primavera, que pertencia à sua família, e se dedicou aos cuidados do lugar. Nascida sua filha e passado o resguardo, ficou um tempo com a família Soriano até que o pai de Thomaz faleceu e retornou à fazenda Primavera. Nesta segunda ida, foi administradora da lavoura e do pasto, cuidou da casa, dos filhos e assumiu o papel primário de sua própria vida, sem estar à sombra de homem algum. 

Em sua primeira entrevista como prefeita eleita, fornecida ao jornal ‘O Paiz’ e encontrada no site da Biblioteca Nacional, Alzira fala sobre o tempo doloroso que enfrentou. 

“Sofri o pior golpe que uma criatura pode experimentar. Aos 4 anos e 11 meses de casada, perdi meu esposo ficando com três filhinhas. Ainda hoje enluta-me o coração. Entretanto, com estoicismo e confiança em Deus e nas minhas próprias energias, tendo vindo até hoje trabalhando e educando os três entes que são a maior fortuna de minha existência. A luta é prazer para os fortes. Por isso tenho vencido e hei de vencê-lo”, lamentou.


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Foi por isto que, quando Bertha Lutz chegou até Lajes e se encontrou com Lamartine, o nome da indicação já estava na ponta da língua: tinha de ser Alzira Soriano. 

Mesmo que indicada por um homem e ainda que estes estivessem presentes em todos os passos dados até então, foi o apoio feminino quem deu suporte e zelou por ela o tempo todo. “Ela com certeza teve um apoio intenso feminista, foram suportes de diversos lados, a Bertha Lutz se preocupou em garantir o nome dela. Eu acredito, inclusive, que as duas mantinham cartas”, afirma Engler.

A participação dela na primeira entrevista reproduzida pelo ‘O Paiz’ não foi a única representação feminina na imprensa, parte dos meios de comunicação se dedicavam a escrever e normalizar  a posição feminina no campo político. Este jornal mantinha, inclusive, uma parte especialmente dedicada ao progresso feminino, onde a  Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, escrevia semanalmente. Nesta entrevista fica claro como a política era um campo conhecido para a jovem prefeita. 

“Estive sempre ao lado do meu pai, nos momentos mais difíceis, intervindo com segurança e altivez. Assim, a política é um mecanismo que conheço peça por peça e que se adapta perfeitamente ao meu temperamento. Sempre tem sido uma das minhas maiores aspirações na vida política”, disse. Apesar disso, a pré-campanha já mostrou que, apesar da cadeira garantida pelo voto democrático, o respeito não fazia parte do pacote.


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O estereótipo caminha lado a lado 

Mesmo que cuidasse de si mesma e de todos ao redor, como um homem era ensinado a fazer desde seus primeiros dias, Alzira ainda teve de enfrentar a ‘obrigação’ de ser mulher e a falta de respeito de seus colegas com o cargo que ocupava. Nas entrevistas que fornecia, sempre era questionada se, apesar da política, mantinha suas obrigações com a casa e com seus filhos. 

Não só os questionamentos a assombravam diariamente, seu adversário pela cadeira ficou tão envergonhado pela derrota que se mudou de cidade e fugiu do legado de perder para uma mulher. 

“Ela teve que passar por muita coisa, já enfrentava dificuldades muito antes de ser eleita. As pessoas a chamavam de ‘mulher pública’, uma alusão ao ‘homem público’, da política. Só que na conotação dada a ela dava a entender que ela era uma prostituta”, conta Rudolfo Lago, jornalista e bisneto de Alzira. Engler, estudiosa do cargo, concorda. “Na campanha ela enfrentou muita chacota, pessoas desacreditando dela e preconceito”, conta. 


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No seu discurso de posse, encontrado no site da prefeitura de Lajes, a prefeita já deixava claro saber que seria difícil. “Sei que vamos tentar uma experiência difícil – difícil, porque a função é espinhosa, difícil porque essa experiência é a primeira a realizar-se no nosso país, difícil, sobretudo porque a incumbia de sua execução, reconhece e publicamente confessa o temor de lhe faltarem força bastante para levá-la a um termo brilhante”, assegurou. 


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Eleita com 60% dos votos, Alzira arregaçou as mangas e começou a transformar o gabinete caótico que lhe foi entregue no dia 1 de janeiro de 1929. Apesar dos poucos registros da época, é certo que ela constituiu secretários e pediu o auxílio ao governo do estado para receber um escriturário. 

De toda forma, não teve muito tempo para fazer qualquer coisa, se manteve no poder por apenas dois anos. Eleita em 1928, ela logo deixou o posto, em 1930, depois que o golpe de Getúlio Vargas foi dado no Estado, cravado na história como ‘Revolução de 30’. “Chegaram a oferecer sua permanência como interventora se ela apoiasse o regime, mas ela se retirou”, afirma Engler. 

A política não foi passageira

Conforme sua biografia, “Luiza Alzira Teixeira de Vasconcelos primeira mulher eleita prefeita na América do Sul”, escrita pela jornalista e museóloga Heloísa Maria Galvão Pinheiro em 1993, depois de sair do cargo, ela se mudou para Natal, onde permaneceu até 1947. Ano em que voltou à vida política. Foi eleita, também em Lajes, vereadora, cargo que ocupou por três mandatos.

Faleceu no dia 28 de maio de 1963, por um câncer descoberto em estágio já avançado. Sua passagem em vida deixou, por todas as gerações seguintes da sua família, uma marca eterna. “Meu pai era apaixonado por ela, e a presença dela influenciou nossa vida. Tanto eu quanto meus irmãos tivemos muita sorte de ter essa referência feminina muito importante. Hoje nós carregamos o respeito à figura feminina, mantemos esse valor. Vovó Alzira é, sem dúvida nenhuma, uma força muito forte na vida de nós todos”, ressaltou Rudolfo, que não chegou a conviver com a bisavó, mas teve a infância recheada de histórias contadas pelos parentes que conheceram Alzira. 

Ainda de acordo com sua biografia, a história de Alzira foi, por muito tempo, resumida a “citações ligeiras em alguns livros que se ocupam do direito da mulher”. Desta invisibilidade, seu bisneto concorda. Para ele, sua história só está sendo valorizada agora. “Ela abriu esse caminho, uma luta tão importante. Ela foi a primeira da América Latina, ela abriu esse caminho. A história dela ficou esquecida por um tempo, mas na nossa família, nunca foi”, finaliza Rudolfo. “Ela deixa a mensagem de que a luta pelo voto feminino não foi algo que apareceu da noite para o dia, teve uma trajetória grande de mulheres, mesmo antes da Alzira. Não foi algo dado de presente, foi uma luta”, conclui Engler. 

Protagonista de um cenário estadual, o voto feminino, nacionalmente, foi aprovado em 24 de fevereiro de 1932, por Getúlio Vargas. A abertura da possibilidade para todo o País deu lugar para novas primeiras protagonistas. Desta vez, foi a primeira deputada, Carlota Pereira de Queiroz, quem passou pela chegada. 

Médica e deputada

Na vida política, Carlota Pereira de Queiroz era identificada como médica e primeira deputada mulher do Brasil, nomeações importantes para virem acompanhadas ao lado da apresentação de qualquer pessoa. Além e muito antes disso tudo, ela foi filha de José Pereira de Queiroz e de Maria Vicentina de Azevedo Pereira de Queiroz, nasceu em 13 de fevereiro de 1892, na cidade de São Paulo. Integrante de uma família tradicional e rica local, fator imprescindível com sua chegada ao topo, seu avô foi um homem rico e proprietário de terras, da região de Jundiaí, segundo a tese da historiadora Monica Schpun: “Carlota Pereira de Queiroz: Uma mulher na política”.

Formada pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1926, com um estudo sobre o câncer, Carlota se aproximou da política através do conhecimento. Foi comissionada, em 1929, ano em que Alzira tomava posse, para estudar Dietética Infantil na Suíça pelo governo de São Paulo. Antes, havia recebido um diploma de professora pela Escola Normal da Praça, profissão que exerceu por 10 anos.

Eleita pela primeira vez no pleito para escolher os deputados da Assembleia Nacional Constituinte, em 1933, onde concorreu com outras 19 candidatas, Carlota recebeu 5.311 votos no primeiro turno e 176.916 no segundo. Assim, além de primeira deputada, ela ocupou o lugar de primeira mulher a assinar uma Constituição brasileira. 

Nesse processo, participou dos trabalhos da Comissão de Educação e Saúde, onde criou um projeto de criação de serviços sociais no País. Foi reeleita em 1934, quando a Constituição já havia sido promulgada, desta vez com 1.899 votos no primeiro turno e 228.190 votos no segundo. A vida e chegada da médica à Câmara carrega significados, controvérsias e convivência exclusiva com homens, cerca de 253.

“Quando eu me deparei com o itinerário da Carlota, vi que ela sempre foi atraída pelo espaço ocupado pelos homens. Os espaços reservados pelas mulheres eram pouca coisa para ela, ela não se satisfazia”, quem afirma a preferência de Carlota pelo espaço político é a doutora em história Mônica Schpun, com trabalhos escritos sobre a deputada. 

O espaço que ocupou como médica já era, desde o início, uma decisão pensada em alçar voos mais altos. Em escritos, encontrados por Schpun e reproduzidos em seu estudo, Carlota deixa isso claro: “Desiludi-me com a carreira de professora; o meio era acanhado, não havia grande futuro, os melhores lugares eram dos homens, eu aspirava mais…”, diz. 

Na medicina, atuou em todos os espaços possíveis, trabalhou em hospitais, clínicas, pesquisas, integrou a Association française pour l’étude du concer e a Medicina Social da Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo, foi chefe de laboratório, manteve seu próprio consultou e se tornou referência em sua especialidade.
No campo político, o foco sempre foi a oposição a Vargas. “Ela se mobilizou contra Vargas e junto às mulheres em 1932. Quando o direito de voto foi adquirido, as mulheres das elites começaram a se mobilizar por um nome feminino na chapa contra Vargas e, na negociação, a pessoa escolhida foi Carlota, uma pessoa com destaque público e, além de tudo, era uma médica”, ressalta Schpun. 

Viabilizada pela lei recém aprovada, o apoio feminista também esteve, assim como com Alzira, ao lado de Carlota. E, não por coincidência, a protagonista da causa era a mesma: Bertha Lutz. “Ela foi muito apoiada por várias mulheres, figuras chaves da época. No começo ela e a Bertha eram bem próximas”, conta Schpun. 

A proximidade de Carlota e Bertha foi forte durante um tempo, de acordo com o encontrado pela pesquisadora, as duas trocavam cartas e Bertha fazia questão de manter contato e ressaltar a importância da candidatura de Carlota. Depois do início da campanha e, principalmente quando a deputada assumiu o cargo, no entanto, o contato se dissipou e Carlota se afastou das feministas e estabeleceu um perfil de governo. 

 “Depois que a campanha começa ela se afasta das feministas e constrói um perfil muito mais regionalista. Não é uma candidatura feminista, é uma candidatura junto aos paulistas pela pauta de 32”, conta Schpun. 

Distante do feminismo, mas não da misoginia

O afastamento de Lutz e das sufragistas não significa que a deputada fechava completamente os olhos para a diferença de tratamento que recebia em relação aos homens. Durante seu mandato, principalmente, relatos onde ela conta sobre os incômodos sentidos durante uma viagem com colegas ao Sul foram descobertos por Schpun, escritos em um diário de viagem conservado pela família da política. Apesar dos problemas, ela demonstra esperança no futuro. 

“Com o tempo, eles hão de aceitar a companhia da mulher e tratá-la como correligionária. Estamos ainda na primeira geração. Quando elas forem mais numerosas, terão de ceder. Eu sofro, mas por uma causa que terá de vencer”.

Mesmo com o reconhecimento registrado em um desabafo privado, publicamente, ela afirmava ser sempre tratada como igual. Esse ponto é uma constante entre Carlota e Alzira, as primeiras, que não se manifestavam abertamente contra qualquer discriminação que vivessem particularmente.

“Se ela viesse a público ou reclamasse da misoginia, ela só iria entrar em uma armadilha, confirmando os estereótipos da mulher que só reclama, que não sabe ir à luta, está ali só para amolar e daria mais corda para a coisa piorar. É complicado, se ela não reclama a coisa continua e se ela reclama, piora”, afirma Schpun.

Em seu discurso de posse, feito no Plenário do Palácio Tiradentes, sede da Câmara dos Deputados, em 13 de março de 1934, fica claro o relato de igualdade em tratamento que pregava. “Além de representante feminina, única nesta Assembléia, sou, como todos os que aqui se encontram, uma brasileira. (…) Acolhe-nos, sempre, um ambiente amigo. Esta é a impressão que me deixa o convívio desta Casa. Nem um só momento me senti na presença de adversários. Porque nós, mulheres, precisamos ter sempre em mente que foi por decisão dos homens que nos foi concedido o direito de voto”, disse. 

Carlota permaneceu no cargo até 1937, quando o decreto de estado de guerra possibilitou que Vargas fechasse todas as casas legislativas do País. No período do Estado Novo (1937-1945), a política esteve ativa na luta pela redemocratização. No golpe de 1964, no entanto, Carlota esteve a favor da tomada de poder pelos militares.

Nos anos em que esteve ativa na vida política, o foco dela foi a união de sua carreira como médica e parlamentar. Foi a primeira mulher a integrar a Academia Nacional de Medicina, em 1942, e posteriormente se tornou  presidente da Associação Brasileira de Mulheres Médicas (ABMM), de 1961 a 1967. Faleceu aos 90 anos, em 1982, em São Paulo. Para Schpun, a candidatura de Carlota é uma lição e, não se deve resumir seu protagonismo a uma faceta ou uma decisão, e sim interpretá-la como a mulher ambivalente que era. 

“O Brasil está vivendo um retrocesso tão grande que, qualquer mulher que se lança na política e enfrenta essas situações tão complicadas como a Carlota enfrentou, é sempre uma lição. Temos que analisar ela no detalhe, ela tinha posturas que eu considero avançadas para o seu tempo e em outras onde ela era uma mulher do seu grupo social e conservadora em alguns aspectos. O fato é que ela rompeu barreiras e isso não deixa dúvidas”, finaliza. 



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